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sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

A JARDINEIRA

Quem chega a Santo Antônio do Muqui, um distrito rural do município de Mimoso do Sul, no Espírito Santo, logo percebe o coreto, quase no centro daquela vila. Seus moradores além de acolhedores respiram cultura, há muitos eventos folclóricos e festas religiosas.
Estamos no final da década de 30. Antonio que ficara viúvo, muito cedo, e com uma filha pequena, casa-se novamente e dessa união nascem mais dois filhos.
O tempo passa e Ana, filha do primeiro casamento e seus irmãos por parte de pai, já fazem parte da juventude da vila:
- Olha aquele rapaz! Parece artista! – exclama Ana. Era um jovem moreno de estatura média, vestido com uma calça de boca muito larga cor bege, tecido panamá, e uma camisa branca. Estava ele mãos nos bolsos, talvez as aquecesse devido ao frio, parado próximo à venda do Sr. Antonio Lopes da Rocha, Antonio do Alfredo, olhando distraidamente para a vitrina daquela casa comercial.
Ana fica ansiosa para conhecer o visitante. Coisa de moça do interior. Ela dá meia volta e retorna, mas o jovem não estava mais admirando a vitrina.
- Será que ele já foi? – reflete consigo mesma e deixa o local.
Naquele mesmo dia, ao voltar da capela de Santo Antônio, onde fora participar do culto de domingo. Ana se junta a algumas amigas: Ireni Vivas, Odede Vivas, Zora Yonara, Francisca Lopes, Anunciata Gasperoni e outras, comentam do jovem visitante, despede-se e encaminha em direção a farmácia do Sr, Antonio farmacêutico em direção a sua casa; de repente ela dá de encontro com o tal jovem, mas agora num estado bem diferente. Ele estava com sintomas de alcoolizado e deitado na calçada, ela passou perto e fingiu não tê-lo visto.
No mês seguinte, ela soube que o tal jovem viera da capital, Rio de Janeiro, pois seus pais não mais o suportavam, apesar de ser o único filho; contudo Ana estava encantada e o jovem não saía de seus pensamentos.
O natal de 1932 se aproximava, a vila esperava como acontecia todos os anos, o folclórico religioso – “As pastorinhas” – no qual Ana fazia uma dos personagens, a “Jardineira”. Logo após viria a Folia de reis, vinda da Areia Branca. Naquele momento a jovem preocupada se pergunta:
- E se ele estiver aqui no dia da minha apresentação, o que farei?
À meia noite, em frente ao presépio, a pastorinha “Jardineira” começou a bailar para receber o nascimento do menino Jesus; o jovem forasteiro estava lá, as pernas e mãos de Ana ficaram trêmulas, seu coração disparou, e seus olhares se cruzaram.
No dia seguinte, 25 de dezembro, como armação do destino, aconteceu um encontro inesperado – cara a cara –
- Nossa, você! – exclama Ana.
- Sim, já sei o teu nome, seu pai é fazendeiro da região...
- Mas, como? Descobri que você é da capital, mas nem lhe conheço.
- Meu nome é José, estou aqui para seguir meu destino. A minha estória é grande e devo lhe relatar por inteira, mas vou começar a lhe dizer: Necessito de sua presença junto a mim, desde que a vi, meus dias tornaram-se diferentes, eu não consigo afastar você de meus pensamentos, embora ainda, eu não a conheça.

“Foi assim o nosso encontro, papai foi contra o namoro, dizia ser José um desconhecido e, além disso, um dependente do álcool; Mas engravidei, meus pais marcaram e apressaram a data do casamento”.
No início da vida a dois, foi tudo maravilhoso. José trabalhava como odontólogo, mesmo sem ter concluído os estudos; nossa filha Marisa nasceu, morávamos numa casa nos arredores da vila, cedida por meu pai, vivíamos com algumas dificuldades.
Em quatro anos de casados, José se embriagou por dezenas de vezes, em algumas sem perder o estado sóbrio, mas o clima começou a mudar drasticamente entre nós. Ele tinha um ciúme doentio, às vezes, seu olhar me assustava, ele investia contra mim argumentando coisas sem sentido, que não existiam, ou que eu não tinha como responder.
Nosso relacionamento estava cada vez pior, ele me batia, me agredia com palavras, também... Marisa completara 5 anos e já havia presenciado muitas cenas horríveis entre nós.

Minha madrasta e meu pai, que contribuíam com mesada e alimentação, resolveram parar de me ajudar, a fim de que eu abandonasse aquele inferno em que vivíamos; mas apesar de tudo, ainda, eu amava meu marido. Ele perdeu o emprego, e sem o apoio financeiro dos meus pais passou a se embriagar constantemente. Por diversas vezes encontrei-o caído pelas ruas da vila.
Meses depois, José recebeu uma correspondência de um advogado da capital, na qual informava a morte de seus pais motivada por um acidente automobilístico, e que ele era o único herdeiro.
E assim foi o nosso adeus; lembro-me que no dia de sua partida, no ano de 1938, pedi-lhe que me deixasse algum dinheiro, pois naquele dia a menina chorava de vontade de tomar leite; José retirou do bolso uma moeda de 100 Reis, e, em estado ébrio, a colocou em minhas mãos. Desesperada e chorando lhe disse:
- Só, essa moeda, como pode sustentar nossa filha?
E ele sarcasticamente respondeu:
- Vira-se!
- Vou lhe dar esse troco em algum dia! – respondi.
Passado algum tempo, mudei para a cidade de Mimoso do Sul e renunciei ao vínculo familiar; tinha o orgulho machucado, quando não aceitei os conselhos de meu pai, interferências ou críticas à vida que eu levava com José. Arrumei trabalho, lavando e passando roupas para a vizinhança, e assim sustentava-nos, Marisa e eu.
O tempo passou, e nunca mais ouvi falar de José, minha filha começou o curso normal, no Colégio Estadual da cidade. Carregava a esperança de ver nossa vida melhorar, pois certa ocasião, em uma palestra dada na paróquia São José, ouvi uma reflexão: “Certa caixa, muito bem embrulhada conservava em seu interior filosofias da vida. Alguém muito curioso tentou abri-la, e de dentro dessa, escaparam o divórcio, o adultério, a droga, a traição... Esse alguém muito espantado fechou-a com rapidez, nela, ficou ainda presa a esperança...”
Certo dia, minha filha chegou do colégio dizendo que um velho de barba branca sentado no banco da praça, chamou sua atenção e a deixou intrigada pela sujeira que o mesmo apresentava, comentei com ela:
- Algumas pessoas não têm sorte na vida.

Fim de ano, 23 de dezembro, e um grande momento esperado: a formatura de Marisa. Estávamos felizes, no quintal eu recolhia asa roupas do varal, enquanto minha filha, na sala, dava os últimos retoques no vestido da festa de formatura e no arranjo do cabelo.
- “Ó de casa”.
Alguém chamava no portão, gritei para que Marisa atendesse. Observei de longe, um homem, que pela aparência era o tal velho de barba branca.
Aproximei-me, sem que eles notassem a minha presença tentando ouvir o diálogo entre os dois, e quase que fiz uma arte ao esbarrar na árvore de Natal que eu mesma armara com tanto cuidado para saudar o nascimento de Jesus. Vi que minha filha após um breve diálogo entrou em casa, logo voltou trazendo um pedaço de pão com manteiga, uma xícara de café com leite e entregou ao velho, que permaneceu ali comendo e bebendo.
Afastei-me silenciosamente e entrei na cozinha levando as roupas recolhidas do varal; nesse momento Marisa veio ao meu encontro:
- Mãe, aquele velho que lhe contei outro dia, está aí na porta, dizendo-se faminto, então levei-lhe café com pão.
- Bondosa atitude! – elogiei.
- Mãe tem aí algum dinheiro trocado, pois o mendigo me pediu?
Lamentei, pois não havia dinheiro algum, gastara tudo com as compras para a formatura, porém nesse exato momento me veio uma recordação: quando José partiu, deixou uma moeda de 100 Reis, que eu havia colocado num bule de louça. E repliquei:
- Há uma antiga moeda, dentro do bule sobre o armário, pegue-a e ofereça ao velho, nos dias atuais essa não vale nada, mas o seu valor pode até dobrar por ser de prata.
Um silêncio tomou conta do ambiente, imagens do passado vieram à minha mente, pensei que estivesse sonhando, e sem poder controlar minha própria vontade meus passos seguiram os de minha filha e fomos juntas até o portão.
Sim estava ali na minha frente o homem que matou em mim os sonhos de uma jovem que um dia muito lhe amou. Desejei-lhe um feliz Natal, após apresentar a Marisa ao seu pai. Foi quando ele olhou para mim e disse: Eu tenho pequenos pertences na casa de um amigo, posso trazer para cá. Respondi com convicção: José eu disse que lhe perdoei; entre nós não existe reconciliação.

Conto do livro AGENDA 2011, Antologia de Prosa e Poesia, Editora “Celeiro de Escritores”